"Do artesanato e da arte" por Baixo Ribeiro

outubro 22, 2015

JUN MATSUI

DO ARTESANATO E DA ARTE

(TEXTO ESCRITO POR BAIXO RIBEIRO)

 

No Japão, o artesanato faz parte de tradições milenares e é socialmente tratado como algo próximo do sagrado, assim como o Imperador é filho do Sol. A figura do mestre, dentro dessa cultura, é muito admirada, cultuada e, num extremo do tradicionalismo, quase canonizada. Entende-se o mestre-artesão como um ícone da excelência, uma autoridade no seu assunto, alguém capaz de levar uma tradição ao seu estágio mais elevado de desenvolvimento e prestígio. A tradição de se fazer e servir o chá, de criar e vestir o kimono, de fazer o papel, a cerâmica e a construção dos templos em madeiras que não são pregadas, coladas ou parafusadas, mas todas assentadas com encaixes.

Hokusai era artista-artesão, um dos ícones máximos dessa cultura. Autor seminal, foi referência marcante para os artistas europeus que no Século XIX criaram o Modernismo. Hokusai era um mestre-artesão da xilogravura e assim ele se colocava. Na tradição japonesa e no ensinamento Tao, a arte se confunde com o seu fazer e o artesanato é a tecnologia que, dominada com rigor, permite ao mestre chegar ao supremo.

É nesse contexto que a tatuagem de Jun Matsui deve ser compreendida. Um desenvolvimento da técnica com excelência tal, que a autoria, a invenção, a assinatura, se acomodam humildemente atrás do processo artesanal. 
Não se trata apenas de um discurso. Matsui se formou na tatuagem, como todo tatuador ainda se forma até hoje: na vivência com mestres, estagiando em oficinas, exercitando a prática em sintonia com a reflexão, fazendo e fazendo à exaustão, procurando o domínio da técnica, respeitando tradições, chegando ao estágio supremo do conhecimento artesanal para que, só então, surgisse o traço pessoal do artista, humilde e naturalmente.

Vivendo e trabalhando por cerca de dez anos no Japão, Matsui cativou um público fiel ao seu desenho de preto sólido, de abstração gráfica precisa, geométrica e orgânica. Imprimiu forte dinâmica a sua carreira, tornando-se um dos mais respeitados profissionais em todo o mundo, autor original de uma nova estética, nem folk, nem tradicional, nem tribal, nem new tribal. Algo que não tem outra assinatura, senão a sua. 

Se às vezes seu desenho se aproxima do figurativo, como a representação de um animal ou uma adaga, a maior parte das vezes, ele é abstrato e geométrico. Nota-se no conjunto da sua obra um forte rigor formal na exploração do suporte-corpo, nos traçados de linhas precisas e na reconfiguração das formas humanas através das massas de tinta que lhes são distribuídas. Suas tatuagens ocupam o corpo recompondo a figura humana em novas sombras e luzes.

LUZ - Life Under Zen, timbre criado pelo brasileiro Jun Matsui para o seu estúdio e marca em Tóquio, reflete o pensamento por trás da técnica. Com a LUZ, Matsui proclama a independência do seu desenho, como o gerador maior de toda a energia que se consubstancia em design, arte gráfica, fotografia e joalheria, suportes que melhor representam o artista que existe para além do tatuador.

Matsui não se vê como alguém iluminado e carregador de um dom artístico especial. Quando lhe elogiam, dizendo que ele é um dos que ajudaram a elevar a tatuagem ao nível de arte, Matsui não se vangloria. Considera exageradas as teorias criadas em torno de seu nome, como a que diz que por tatuar apenas os seus próprios desenhos, o artista teria criado um novo modelo de relacionamento com os clientes, mais autoral e artístico. Prefere responder que só tatua assim por que não sabe fazer de outro jeito e que, “se soubesse, tatuaria em outros estilos, tatuaria o que lhe pedissem, sem o menor problema”. 

“Não sou um tatuador que vive essa função 24 horas por dia, não tenho isso como estilo de vida, sou um curioso e quero me sentir livre para explorar qualquer outro caminho que me interesse”. Matsui explica que quando foi a Samoa – ilha do arquipélago polinésio – para um período de vivência e intercâmbio com tatuadores locais, percebeu que lá a tatuagem se confunde com a rotina de todos e não é algo dissociável dos costumes e do cotidiano. Não é uma questão artística, é antes de tudo, o comum.

O filme “Jun Matsui”, dirigido por Andre Ferezini, apresenta o lado humano do tatuador, seus pensamentos em voz alta, colhidos em lugares diversos, como no seu estúdio durante uma sessão de tatuagem ou andando a cavalo em sua casa na serra. O imaginário que envolve o tatuador é apresentado por Ferezini em situações que fundem o cotidiano e o momento especial, o trabalho e o ócio, o fazer e o pensar. 

É complexo o processo criativo de Matsui: pesquisa constante associada ao laboratório do dia a dia, formalidade estética temperada pelo conhecimento empírico, técnica lapidada pela prática. O filme captura com precisão o modo como essas relações se dão, através do encadeamento de cenas que nos aproximam da intimidade do artista entremeadas por imagens que contextualizam os inspirados resultados desses processos.

JUN MATSUI

OF CRAFTSMANSHIP AND ART

(text written by Baixo Ribeiro)

In Japan, craftsmanship is part of thousand-year-old traditions and is socially treated as something close to sacred, as the Emperor is the son of the Sun. The master, in this culture, is much admired and worshipped, and in an extreme of traditionalism, practically a canonized figure. The master-craftsman is seen as an icon of excellence and authority in his area, someone capable of taking tradition to its most elevated stage of development and prestige. The tradition of making and serving tea, of creating and wearing a kimono, of making paper, pottery, and the construction of temples with wood and boards that are not nailed, stuck or screwed together, but instead set to fit.

Hokusai was an artist-craftsman, one of the main icons of this culture. A seminal author, he was a marking reference for the European artists who in the 19th century created Modernism. Hokusai was a master woodcut craftsman, and that's how he placed himself. In the Japanese tradition and in the teachings of the Tao, art is one with its making, and handicraft is the technology, which rigorously dominated, allows the master to reach the supreme. 

It is in this context that the tattooing of Jun Matsui must be understood. The development of such excellence in technique, that the authorship, the invention, the signature place themselves humbly behind the craftsmanship process.

This is not just about discourse. Matsui made himself in tattooing as every tattooist still does to this day: by interacting with masters, interning in workshops, exercising the practice in synchronicity with reflection; doing and doing over again to the point of exhaustion, looking for dominion of the technique, respecting traditions, reaching the supreme stage of knowledge in craftsmanship, so that only then, would the personal line of the artist appear humbly and naturally.

Living and working for about 10 years in Japan, Matsui captivated a group of followers who are loyal to his solid, black drawings, his geometric, organic and precise, graphic abstraction. He imparted a strong dynamic on his career, making himself one of the most respected professionals in the world, the original author of a new aesthetic, not folk, not traditional, not tribal, not new tribal. Something that has no other signature besides his own.

If there are times when his drawing seems figurative with the representation of an animal or a dagger, most times it's abstract and geometrical. Strong, formal rigor can be observed in the bulk of his work, in the exploration of the body as support, in the precise lines and in the reconfiguration of human forms through the mass of ink which is distributed upon them. His tattoos take up the body, recomposing the human figure in new shadows and light.

LUZ - Life Under Zen, a hallmark created by the Brazilian Jun Matsui for his studio andbrand in Tokyo reflects the thought behind the technique. With LUZ, Matsui proclaims the independence of his drawing as the main generator of all the energy that is consubstantiated in design, graphic arts, photography and jewelry; supports that better represent the artist that exists beyond the tattooist.

Matsui does not see himself as an enlightened person or as the bearer of a special, artistic gift. When he is complimented, and people say that he is one of those that have elevated tattooing to the level of art, Matsui does not boast. He considers the theories created around his name to be exaggerated, like the one that says that because he only tattooes his own drawings, the artist has created a new form of relationship with his clients that is more authorial and artistic. He prefers to answer that “he only tattooes this way because he doesn't know how to do it any other way, and that if he knew how, he would tattoo other styles, he would tattoo whatever people asked him to, with no problem at all.”

“I'm not a tattooist who lives this life 24 hours a day. I don't see this as a lifestyle. I'm curious and I want to feel free to explore any other path that may interest me.” Matsui explains that when he went to Samoa - the island of the Polynesian archipelago - for a period of interaction and exchange with local tattooists, he noticed that tattooing blends in with the routine of everyone there, and it is not something that is dissociated from the customs and day-to-day life. It is not an artistic issue, it is above all else, the mundane.

The film “Jun Matsui”, directed by Andre Ferezini, presents the human side of the tattooist, his thoughts expressed aloud, collected in several places, such as his studio during a tattooing session or horseback riding on his ranch in the hills. The immaterial which involves the tattooist is presented by Ferezini in situations which blend routine and special moments, work and idle time, doing and thinking.

Matsui's creative process is complex: constant research associated to the day-to-day laboratory, aesthetic formality seasoned with empirical knowledge and technique lapidated by practice. The movie is precise in capturing the way in which all of these relations are tied together, through the connection of scenes which bring us closer to the intimacy of the artist, intertwined by images that contextualize the inspired results of these processes.



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