"Era preciso inventar o que não existia..."

10월 22, 2015

 

Entrevista completa para a revista DOC.Arq de Juiz de Fora-MG

 

 

Por Wendell Guiducci

            São quatro e meia da tarde do dia 30 de abril quando, dirigindo para o trabalho, toca o telefone. Do outro lado, uma voz gentil pergunta se é o “Vendell” que está falando, e eu, acostumado às confusões fonéticas que meu nome provoca, digo que sim. Era Jun Matsui, um dos mais prestigiados tatuadores em atividade no mundo. Adepto do silêncio, pouco afeito a entrevistas, ele retornava, por telefone, um e-mail que eu enviara a sua assistente pedindo para conversar. Jun, dono de uma assinatura muito particular, queria saber sobre o que seria a reportagem, e ficamos 20 minutos falando sobre vários assuntos. Por fim, ficou combinado que eu enviaria as perguntas por e-mail e ele me responderia sem demora. E foi o que ocorreu.

Jun Matsui já tatuou Rihanna e desenhou um tênis signature para a Nike. Pintou o corpo de Alinne Moraes para a capa da revista “Rolling Stone” e tatuou o fotógrafo italiano Mario Sorrenti. E um integrante da máfia coreana e outro da Yakuza, a máfia japonesa – esse último, no pênis. E lançou, ainda no Japão, um livro, “Hari”, hoje artigo raro, com uma coleção de fotografias de trabalhos seus. Mas não conversamos sobre nada disso. Como se dividíssemos um bule de chá sob as flores de uma cerejeira, abordamos o tempo, a vida nas metrópoles, a cultura japonesa, o futuro de seu trabalho multidisciplinar e, obviamente, tatuagem.

Um horário para vestir a pele com uma obra de Jun Matsui, pai de um casal de filhos pequenos e radicado em São Paulo desde que retornou do Japão, onde viveu entre 1990 e 2007 e começou a tatuar, tem se tornado cada dia mais difícil. Ele vem se dedicando à arte da confecção de joias, ao design de roupas para sua própria grife, a Life Under Zen, e à loja de mesmo nome que abriu no fim do ano passado na Galeria do Rock, em São Paulo. Em entrevista exclusiva à DOC.Arq, este artesão dekassegui de 43 anos, apaixonado por skate (“Nunca parei de andar... por dentro”, garante), que ainda pretende se dedicar à literatura, fala um pouco mais sobre suas origens, suas artes e seus novos projetos, deixando muito claro que, para ele, “pessoal e profissional são uma coisa só”.

 

Qual a sua primeira lembrança de uma tatuagem?

​Sempre conto a mesma história, dividida em duas partes, apesar de não confiar muito na minha memória. A cena da primeira parte é um grupo de rapazes na rua, talvez no Rio de Janeiro, mas duvido, pois eu tinha que ter menos de 5 anos para que isso tivesse acontecido lá, e, de toda a minha infância, este período no Rio é o mais obscuro, não lembro de nada. Enfim, tenho esta imagem na minha cabeça, de ter visto um desenho no corpo de um destes rapazes. Até hoje presto atenção quando testemunho a maneira como uma criança reage ao seu primeiro contato com uma tatuagem e penso: será que vai acontecer o mesmo que aconteceu comigo? Acredito que, como eu, muitos adultos que decidiram se tatuar ou até mesmo se tornar tatuadores "tomaram" essa decisão na infância... bastou o primeiro encontro com uma pessoa tatuada. A segunda vez que a tatuagem apareceu na minha vida eu já tinha 13 ou 14 anos e vi uma imagem em uma revista de surfe. Imagina a minha felicidade de poder ficar olhando e estudando a imagem... imaginando como aquilo poderia ser feito. Meu primeiro impulso foi me trancar no quarto com uma agulha de costura e um pote da nanquim e "tatuar" o desenho na parte interna do meu antebraço. Era uma pirâmide com um olho no centro e chamas em volta... consegui fazer só o olho. Acabei e pensei: "tô fodido!!". Passei todo o resto da minha adolescência perturbado, tentando esconder a tatuagem dos meus pais e de todo o mundo em casa e na rua, com vergonha do que eles iriam pensar. Hoje ela existe, nunca foi coberta e significa pra mim o começo, a tatuagem no seu estado mais puro.

 

Como teve início sua relação com o desenho​?

​Não sei. Em mais uma dessas lembranças de infância, me recordo de estar sentado na terra, quando nos mudamos para o Mato Grosso do Sul, desenhando a imagem de um sol usando pedras pequenas. Levo essa lembrança a sério e acho ela bonita, talvez por isso acabe escolhendo este momento como o "primeiro" desenho. Talvez essa tenha sido uma das primeiras vezes que senti prazer em ficar só e concentrado, trazendo para fora o que só eu via por dentro. Lembro da minha primeira escola em São Paulo, eu passava a maior parte do tempo desenhando na classe. Qualquer espaço livre em um caderno ou livro era suficiente. Eu estilizava a minha inicial com uma gota colorida por cima, como se o J estivesse no chão e eu deixasse um copo com tinta cair em linha reta bem no centro da letra. Alguém viu, e eu logo estava com cadernos de outros alunos na minha mesa. Eu não era popular, não tinha amigos, e vi o desenho como salvação. Sem ele continuaria invisível. Percebi logo como saber desenhar tinha um significado, que o importante não era saber desenhar, mas saber o que fazer com o desenho pronto. Entendi que era importante desenhar para os outros, isso fazia a minha vida na escola melhor e mais completa. Até hoje não entendo as pessoas que dizem fazer algo para elas e não se importarem com o que os outros pensam. Essa deve ser a diferença entre hobby e trabalho. O trabalho, por mais solitário que seja, sempre termina no coletivo. No final, meu sentimento é simples: isso é a única coisa que sei fazer bem, e ainda bem que as pessoas gostam.

 

Você se mudou para o Japão aos 18 anos, desiludido com a situação do Brasil, e trabalhou lá por 16 anos. Como essa experiência agiu sobre a sua formação?

Me lembro de ter visto um artigo sobre a visita de Hillary Clinton à Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo. Um aluno perguntou sobre as diferenças de oportunidades entre brancos e negros nos Estados Unidos, ela respondeu que "o talento é universal, ou seja, ele brota espontaneamente sobre todo o planeta, todas a gerações produzem talentos naturais independente da geografia e do perfil sócio-econômico-cultural. A oportunidade, não". Algumas sociedades são mais engajadas e cautelosas em não desperdiçar o talento individual que nelas nasce de forma natural. Obviamente que isso resulta em progresso, em inovação, em prosperidade e cultura. Sempre penso nisso quando comparo Brasil e Japão. Uma comparação injusta, verdade, mas a única que tenho. Acredito que o maior impacto vem da experiência de ter passado a parte mais importante da minha formação em uma sociedade na qual o coletivo precede o indivíduo. Não tenho nenhuma expectativa utópica em relação ao Brasil, nem meus sentimentos de revolta mudaram desde que voltei... eles simplesmente são agora menos imaturos. Sinto e vejo as mesmas coisas que me perturbavam e me fizeram ir embora quando tive a chance. No Japão, vi pela primeira vez um mundo diferente, um mundo que eu não acreditava existir. Aprendi que não adianta você gostar do lugar e o lugar não gostar de você... aprendi que, como na sala de aula da minha adolescência, eu tinha que mostrar qual era a minha contribuição para o lugar antes de tirar algo dele. Aprendi ser possível se sentir em casa mesmo estando tão longe da sua. Aprendi que longe da zona de conforto é onde me sinto mais confortável. Aprendi que o pessoal e o profissional são a mesma coisa.

 

E do nordeste, você conserva alguma coisa que transpareça em seu trabalho?

​A capacidade de me emocionar, a música, a literatura e o artesanato. Está tudo presente. Desde a alta cultura até a rua.

 

Você nasceu em Recife, morou no Mato Grosso do Sul, mas viveu muito tempo em São Paulo, depois Tóquio, conheceu Los Angeles, voltou a São Paulo... Qual a sua relação com as grandes metrópoles?

Não acho que eu tenha hoje uma relação direta, contemplativa com a "cidade grande" como tive mais cedo em minha vida. A verdade é que hoje dou mais importância a estar no "tempo" certo do que no "lugar" certo. A primeira e única vez em minha vida que senti isso em uma metrópole foi na Tóquio dos anos 1990, a sensação de estar no lugar certo, na hora certa era verdadeira, e quem estava lá sabe do que estou falando. Hoje em dia, se vou a uma cidade grande não vou em busca de oportunidades, mas sim levado por sentimentos que tenho por pessoas que moram nesse lugar e de quem sinto falta. Isso pode parecer radical, mas não vejo porque uma pessoa morar em uma cidade grande se o propósito principal não for a prosperidade material, principalmente em uma cidade grande na América Latina. A única coisa que justificaria morar em uma cidade disfuncional e inconveniente como São Paulo seria o custo de vida aqui ser muito mais barato que em outras metrópoles do Hemisfério Norte, o que não é o caso. Obviamente digo isso do ponto de vista da classe média. Riqueza e pobreza (sabendo que ninguém "é" rico ou pobre, e sim "está" rico ou pobre) são muito parecidas mundo afora. A diferença de um lugar para outro aparece no estilo de vida e as oportunidades de avanço de quem está no meio. Mas acho que o mais sábio seria escolher o lugar onde se quer morar (quando isso é possível) pela maneira como as pessoas que moram nesse lugar se tratam.

 

Você se tornou conhecido por ter um método de trabalho muito específico como tatuador, um tempo que não condiz com a velocidade da contemporaneidade.

Eu não considero meu método "meu". Sou um artesão e, como qualquer artesão, o impacto que a tecnologia tem em meu trabalho é limitado e até irrelevante do ponto de vista prático. Um mestre sapateiro hoje demora o mesmo tempo para fazer um sapato bem feito que demorava um mestre há 80 anos atrás. E um artesão não compete com o relógio, o espírito da coisa é exatamente o contrário. Quando estou trabalhando, o tempo deixa de existir. Mas tento não ser nem muito rápido nem muito devagar. Esta é a diferença entre pressa e rapidez. Baltasar Gracian disse que a única coisa que todos de fato possuem é o tempo. E a pergunta deve ser sempre essa: o que você vai fazer com o seu? Às vezes imagino que, se fosse possível saber quanto anos teríamos de vida no nosso nascimento e as velas aparecessem nos bolos de forma decrescente, talvez a vida fosse diferente, mais calma, mais natural.

 

Como a moda e a ourivesaria entraram na sua vida?

Sempre gostei da rua e acredito que peguei um pouco da fase quando ainda dava para saber logo de onde vinham as ideias que apareciam nas revistas. Hoje já não se sabe se a revista se alimenta da rua ou a rua da revista. No final dos anos 1980, a gente precisava inventar o que não existia se quisesse se vestir diferente. Hoje tudo está em algum catálogo, inclusive estilos de vida completos com vestúario, gastronomia, arquitetura, literatura e música... um aplicativo te ajuda a ser você. Seu único trabalho é consumir. Eu me lembro de ter começado a fazer camisetas em Tóquio porque sempre tinha alguma ideia que aparecia mais tarde em algum lugar. Pensei: “se eu fizer, as pessoas vão gostar”. Uma conta simples, e mais uma vez meu desenho me leva. A pessoa certa apareceu, e tive minha primeira chance na vida de ter meu próprio negócio fora do universo do artesão tatuador. Foi meu "pai" japonês que acreditou no potencial da ideia como negócio e financiou o projeto. O ouro sempre foi uma paixão, mais ligada a superstição que ao estilo. Acredito que o ouro me traz sorte e é o material que mais combina com os meus desenhos. A modelagem em cera acabou sendo tão importante como trabalho que cheguei a pensar que a tatuagem foi parte do caminho, e a escultura, o ponto final. Finalmente estava só de novo, eu, o bloco de cera e as ferramentas, contente.

 

E agora você está abrindo uma loja. Fale um pouco sobre ela, por favor.

A loja foi mais uma daquelas coisas da vida que não estavam na lista. Tive uma filha no começo de 2013, Hari, e planejei uma viagem com ela e minha esposa para 2014. O plano era passar uma temporada no Japão, seis meses ou mais, ver para onde a vida nos levaria. Acontece que minha esposa engravidou novamente, e isso mudou tudo. Cancelamos as passagens e nos preparamos como foi possível para a chegada do Nui. Na minha visão, o primeiro ano de um bebê requer a família toda no ninho, e é durante este tempo que a "cola" seca. Todos os dias juntos, durante um ano, quietos, sem mexer nas coisas até a cola secar. O Nui chegou em uma casa muito diferente da qual a Hari encontrou quando nasceu, mas apesar da rotina da casa ser mais intensa, eu não quero que com ele seja diferente. A loja sempre existiu na minha cabeça, e durante esses últimos anos tudo indicava que Tóquio me ofereceria uma segunda chance de sair da sala de tatuagem e ir para a rua de novo. Eu precisava iniciar um novo ciclo de trabalho na minha vida, e a chegada do meu segundo filho colaborou para que eu buscasse por isso aqui, apesar de nunca ter tido pretensões de abrir uma loja em São Paulo. Decidi procurar pelo lugar perfeito, por um lugar que só existia aqui, por um lugar que me fizesse feliz, como alguém que abre uma loja numa rua pela qual é apaixonado e não somente pensando no "ponto" do ponto de vista comercial. Queria um lugar que não pudesse ser encontrado em nenhuma outra cidade, senão qual a graça? Frequento a Galeria do Rock desde que tenho 15 anos e levo todos os amigos japoneses que me visitam lá, todos vão embora dizendo que foi o lugar mais genuíno e vibrante que visitaram na cidade. Comecei a executar meu plano de abrir a loja lá sozinho, sem contar nada para ninguém ou pedir conselhos. Fiz exatamente o que e como queria fazer, a minha esposa Júlia sendo minha maior parceira e cúmplice. Minha única regra era que, se as coisas não se mostrassem a favor, eu não iria forçar, erro que cometi muito ao longo da minha vida. Ao longo de três meses vivi uma sequência inacreditável e emocionante de episódios que levaram à abertura da loja no dia 24 de novembro de 2014. Apesar de precisar de meus momentos sozinho de maneira regular, a grande diferença entre a tatuagem e a loja é exatamente essa: a possibilidade de trabalhar em colaboração com outras pessoas, em fazer parte de um time e trabalhar em grupo. Isso também me interessa e faz diferença na minha vida. A tatuagem é um trabalho solitário por natureza, e a loja me permite mostrar meu trabalho para mais pessoas. Durante este processo conheci e trabalhei com pessoas sem as quais nada disso teria sido possível e iniciei um novo ciclo de vida certo de que estou fazendo o que tenho que fazer, me sentindo mais parte da cidade e do país.

 

O corpo é mais criador ou mais espaço de criação?

Depende de quem esse corpo vai encontrar pelo caminho.



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