VIDA LOKA

VIDA LOKA

maio 12, 2016 8 Comentários

Era sábado de manhã, dia 26 de março,no dia seguinte o mundo católico celebraria a ressurreição de Cristo e a indústria do chocolate e os dentistas mais lucro com esse fenômeno da natureza, o único do qual se tem registro. 
Eu saí de casa cedo e o plano era ir até a casa do Daniel encher o carro de pacotes de camisetas que tinham ficado prontas no dia anterior e ir pra loja que estava precisando de coisa nova já fazia tempo. 
Eu estava cheio de energia e curioso pra saber a reação dos clientes com o nossa primeira série de estampas novas do ano. 
Eu moro no alto de pinheiros e o Daniel na Vila Madalena.O caminho é curto e rápido principalmente num sábado de manhã. 
Logo que saí senti uma dor no abdômen e minha suspeita inicial era de que fosse uma simples cólica. 
Cheguei na casa do Daniel que estava me esperando ,saí do carro reclamando e fiquei de cócoras na calçada por alguns minutos,a única posição que aliviava um pouco a dor. 
O Daniel que também passou pelos seus próprios dramas gastrointestinais e anda com Buscopan na bolsa me ofereceu alguns comprimidos que eu tomei na hora e sem pensar apesar de ser do tipo que não gosta de medicamento e evita ao máximo tomar qualquer coisa pra qualquer coisa. 
Era sábado de manhã e a rua estava quieta. 
No meio dessa cena aparece um chinês com cara de quem estava dormindo na rua há alguns dias. 
Ele se aproximou de mim,fez a típica reverência  que os orientais  fazem quando se cumprimentam e pediu ajuda. 
Eu olhei bem olhos do bicho ,perguntei o nome dele e pedi pra ele me explicar o que estava acontecendo. 
Ele quase chorando e usando um português básico e difícil de entender me contou o drama pelo qual estava passando. 
Havia chegado de Curitiba há uma semana e fora assaltado no primeiro dia.Desde então tentava conseguir na rua dinheiro pra voltar, sozinho e sem comida ou abrigo. 
Um outro chinês da 25 de março tinha sido a única pessoa que o havia ajudado nesse período com 25 reais pra comida mas ficou com o passaporte do bichinho  como garantia pelo empréstimo. 
Eu entendi o que precisava entender da situação. 
Pedi pro Daniel abrir a porta da Toyota e falei pro chinês entrar que a gente ia pro centro. 
E lá fomos nós. 
Eu e o Daniel na frente e o chinês sentado em cima dos pacotes de camisetas na parte de trás. 
A cólica não melhorava mas a situação distraía a minha mente. 
Parei o carro no estacionamento e enquanto o Daniel levava a mercadoria pra loja eu fui com o chinês até um caixa eletrônico. 
Mais uma vez olhei bem nos olhos dele e falei pra ele ficar mais esperto com as coisas,que ele era um homem.Dei o dinheiro da passagem pra Curitiba e os 25 pro passaporte e desejei boa sorte pro bicho. 
Eu me vi na pele dele durante alguns instantes quando me lembrei dos meus primeiros dias longe de casa do outro lado do mundo  e também achei que pudesse mudar um pouco a impressão dele da cidade...é um inferno, mas se você prestar atenção percebe que as pessoas também se ajudam. 
Ele me fez uma reverência dessa vez abaixando ainda mais a cabeça e sumiu pelo mundo de novo…destino final China. 
Eu cheguei na loja reclamando da dor que eu achava estar piorando e acabei indo até uma farmácia na tentativa de encontrar algo mais forte que pudesse aliviar a situação. 
Nada feito.Mais Buscopan. 
Decidi ficar na loja até a dor passar e quando percebi que isso não ia acontecer resolvi arriscar e voltei dirigindo achando que ia acabar parando o carro no meio da rua e pegar um táxi. 
Liguei pra Júlia do meio do caminho e pedi pra ela encher a banheira com água quente. 
Cheguei em casa ,tomei meu banho e consegui depois disso dormir por 2 horas. 
Acordei com a mesma dor e às 6 da tarde  finalmente me rendi e pedi pra Júlia me levar pro hospital. 
A primeira coisa lá foi tomar um coquetel intravenoso das mesmas drogas que eu havia tomado ao longo do dia...mais Buscopan no sistema. 
Isso aliviou a dor pela primeira vez desde de manhã e quem sente dor constante sabe o que significa um intervalo desse. 
Passei pelo procedimento de rotina respondendo as perguntas do médico de plantão com um único pensamento na cabeça: 
-Chegou a conta. 
Eu não sabia o que estava acontecendo mas não estava surpreso com a situação. 
Eu sei o quanto abusei do meu corpo nesses últimos dois anos e sabia que era uma questão de tempo até ele reagir as minhas provocações. 
O próximo passo foi uma tomografia e às nove da noite, depois de tomar minha dose de contraste na veia e ouvir as instruções do técnico,eu passei os próximos 25 minutos da minha vida “encaixado” numa máquina de TC Scan japonesa que falava comigo. 
Quando as imagens ficaram prontas e o médico do plantão, que já era outro, me chamou nós já estávamos no hospital há 3 horas. 
A jeito dele me irritou de cara e ficou claro que não havia afinidade nenhuma para uma comunicação razoável entre nós mas ele teve tempo de sugerir antes de qualquer outra coisa a internação imediata. 
Nós pedimos para ele ligar pro médico indicado pelos pais da Júlia quando estávamos a caminho do hospital e passar os resultados da tomografia pra ele. 
Ele voltou depois de 15 ou 20 minutos e disse que o Dr.Fernando estava a caminho. 
Era 11 da noite do sábado e nessa hora a intuição deu lugar para a razão e ficou claro que era melhor estar preparado mentalmente para o que estava por vir. 
O Dr.Fernando chegou e foi um alívio perceber que ele era ele...se vocês me entendem. 
E pela primeira vez entendi o que estava acontecendo. 
Surgiu nas imagens o que ele naquele momento chamou de “inflamação” e  que estava causando o espessamento da  parede do cólon e obstruindo o canal. 
Era isso que causava a dor. 
Ele foi cauteloso na análise da imagem e no diálogo comigo mas hoje eu sei que ele já sabia o que estava vendo na tela. 
Eu só queria voltar pra casa e ver meus filhos . Não conseguia pensar em outra coisa. 
Disse pra ele que não sentia mais dor e que agora pelo menos sabia o que estava acontecendo e podia controlar a situação através de uma alimentação líquida/pastosa. 
Ele me liberou e daí pra frente começou de verdade o inferno. 
Passei o domingo “bem” ,em casa com minha família e não senti nenhuma dor. 
Na segunda fiz minha primeira consulta com   Dr. Dino de quem o Dr.Fernando é na verdade cirurgião assistente. 
Era segunda de manhã e como havia acontecido quando apertei as mãos do Dr.Fernando pela primeira vez senti com o Dr.Dino o mesmo tipo de alívio e bem estar. 
Foi da boca dele que ouvi pela primeira vez desde que tudo começou a palavra câncer. 
Palavra que ne vardade já rondava a minha cabeça desde de sábado.   
Tudo indicava que era um tumor mas isso só poderia ser confirmado após uma colonoscopia que fora agendada pro dia seguinte. 
Saí só do consultório e quando cheguei na rua literalmente não sabia o que fazer. 
Fui pra esquerda,voltei , fui pra direita, voltei, fiquei parado um tempo olhando pro nada...Minha desorientação foi total por alguns instantes e saí andando sem rumo pelo itaim e sentia que o mundo em minha volta estava em uma velocidade e eu em outra. 
Câncer? 
Olhava pras pessoas anônimas na rua naquela manhã de segunda-feira e pensava  nos meus filhos. 
Câncer? 
O resultado da colonoscopia saiu na quinta. 
Tumor maligno estágio 3 numa escala de 1 a 4 ,era tudo que se podia saber naquela hora. 
Janela máxima de intervalo até a operação 2 semanas. 
No dia seguinte que era sexta foi marcada a operação pra próxima segunda dia 04/04. 
Eu já havia emagrecido por causa da alimentação pastosa e isso também tinha que ser levado em conta. 
Eu tive o final de semana pra ligar para alguns amigos coisa que não havia feito até então e isso na verdade amplificou o drama e eu só percebi isso quando comecei a chorar falando com um amigo no Japão pedindo pra ele que é na verdade um irmão contar minha situação pros outros irmãos e me mandar boas vibrações dessa terra tão  longe daqui mas da qual eu sentia tanta falta naquela hora. 
Chorei falando com meu irmão caçula Akira e com minha mãe,coisa que não me lembro quando foi a última vez que aconteceu. 
Resolvi que tão importante quanto o apoio dos meus amigos e familiares  era  importante também me preparar para segunda-feira, fiz mais 2 ou 3 ligações e daí pra frente queria minha mente vazia,limpa e o mais serena possível , não era hora de pensar ou falar. 
Minha força precisava vir de dentro pra fora. 
Eu estava prestes a passar por uma colectomia, a remoção subtotal do intestino grosso, 8 hrs. de cirurgia. 
Impossível descrever a maneira como minha mente estava reagindo a imagem dos meus filhinhos brincando em casa no domingo antes da operação. 
Impossível descrever como me senti enquanto estava sendo empurrado em uma maca pelos corredores do hospital em direção a sala cirúrgica. 
Mas me lembro do alívio que senti na segunda as 10 da noite quando abri os olhos pela primeira vez depois da operação  e percebi que estava segurando as mãos da Júlia. 
Apesar da dor e da morfina eu estava feliz por ter acordado e por ela estar lá. 
A semana que passei me recuperando no hospital foi um inferno dentro de outro inferno. 
Minha noção de dor e desconforto mudou durante este período  e o que mais me angustiava era admitir que não era possível fazer o que eu mais queria naquela hora...pegar meus filhos no colo. 
Eu sabia que tinha muito pelo que ser grato até aquele estágio das coisas mas dor é  dor e afeta sua capacidade de pensar e sentir as coisas. 
As noites eram longas e sofridas , mesmo com toda a atenção médica ,estrutura hospitalar e o conforto de ter um amigo e um irmão que mudaram toda a rotina diaria para poder me fazer companhia enquanto a Júlia ficava com as crianças em casa. 
Essa foi minha vontade.Dar prioridade as crianças e manter a casa funcionando. 
No domingo seguinte depois de 7 dias no hospital eu voltei pra casa. 
Deitei na minha rede e olhando pra cicatriz de 30cm  que passava por cima das tatuagens na minha barriga percebi que ia demorar pra assimilar o que tinha acontecido nas últimas 2 semanas. 
No meio desta primeira semana em casa recebi uma ligação do Dr.Dino que falou antes de mais nada que tinha boas notícias. 
O resultado do exame anatomo patológico não poderia ser mais favorável e apesar de eu ainda ter que consultar um oncologista e seguir com o tratamento tudo indicava que a situação estava resolvida. 
Eu chorei pois estava olhando para as crianças enquanto falava com ele. 
Mais uma vez olhei pra minha barriga e pensei que tudo estava acontecendo muito rápido...o corte ainda ardia. 
Faltava agora o teste final, o Pet Scan. 
E nesse estágio eu já estava vivendo minha primeira experiência em um centro oncológico. 
Tudo indicava que o exame seria um reflexo dos resultados obtidos até então mas obviamente eu continuava apreensivo mesmo sabendo das poucas chances de um resultado negativo. 
O Pet Scan confirmou  que eu estava limpo e na categoria que eu me encontro de perfil de tumor eu teoricamente sequer preciso da quimioterapia. 
Mas ela acontecerá, de uma forma mais “suave”  que assim que me foi explicada me fez imaginar o que ela significa pro corpo de uma pessoa quando aplicada na potência máxima. 
E assim terminou no dia 05 de maio o drama que se iniciou no dia 26 de março. 
É como se eu tivesse passado 7 semanas vendo uma roleta girar com todas as minhas  fichas apostadas nessa única rodada. 
Eu melhoro a cada dia. 
O corpo se recupera rápida e naturalmente sem olhar para trás e a cabeça tenta acompanhar mas não consegue. 
Durante esse tempo em casa fiz o que mais me faz bem , trabalhei. 
Parte das peças que fiz para esta temporada foram concebidas no meio desta história enquanto eu coordenava a execução do trabalho daqui com toda a cumplicidade e apoio incondicional do meu time que fez tanta diferença. 
Talvez muita gente que conheço  fique sabendo do que aconteceu através deste post e quanto a isso não posso dizer nada...as coisas aconteceram assim. 
Esta foi uma das travessias mais intensas e dramáticas da minha vida e o que posso dizer agora é que não sinto hoje em relação a vida nada que eu já não sentia. 
É  claro que como pai eu jamais poderei explicar através da palavra escrita a sensação de ter recebido da natureza uma nova chance  para seguir com o plano original e natural de criar meus filhos, e para isso só me resta ser  grato no sentido mais pleno da palavra,e mesmo assim sempre consciente da fragilidade da vida com ou sem doença. 
Não tive momentos de reflexões profundas,complexas e existencialistas sobre minha missão aqui e na verdade agora que passei por isso acredito que um momento de fragilidade física e mental como este seja o pior para este tipo de coisa. 
Eu estava preocupado com questões de trabalho,prazos e ações que tive que adiar e outras coisas relacionadas realidade do meu presente. 
E eu não quero de maneira nenhuma insinuar que não aprendi com a experiência mas não saí dela achando ter descoberto o que realmente importa na vida e prometendo a mim mesmo mudar as coisas pra melhor. 
E apesar do longo período de negligência em relação ao meu corpo que resultou numa resposta completamente compreensível e previsível da natureza eu senti que perceber através desta experiência  que “eu estava mais do que menos em dia comigo mesmo” fez diferença. 
Se não fosse isso acredito que tudo teria sido muito pior pois a crise teria sido física e também mental...um inferno existencial…”tudo”. 
Não foi o fim do mundo mas também não posso agir como se nada tivesse acontecido. 
Escrever sobre isso me fez bem e talvez me ajude a avançar. 
Eu espero que esta história possa também ser útil de alguma maneira para outras pessoas. 
A maneira como contei isso aqui teve como foco principal o fator tempo. 
Escrever sobre sentimentos mais profundos e complexos relacionados por exemplo  ao meu entendimento do impacto permanente que esse acaso do destino de ter me colocado nas mãos do Dr.Dino causou em minha vida e em todas as outras que ela toca e tocará resultaria em um livro. 
E na verdade isso já foi feito em uma carta de agradecimento que consegui finalmente escrever pra ele na semana passada.
No final de tudo só ficou ainda mais clara a maior das verdades, que o que realmente define o curso de todas as coisas é a presença da harmonia e do equilíbrio. 
Essa sempre foi e continua sendo a minha busca mesmo quando pareço avançar na direção oposta. 
Muito obrigado. 
Jun Matsui 
Every Day Is A Good Day 


Respostas

Deixe um comentário

Os comentários serão aprovados antes de serem exibidos.